As críticas sofridas pela ministra Damares Alves quando assumiu seu cargo no governo despertaram em mim uma indignação antiga contra nossa cultura. Mesmo hoje, depois de seis meses de governo ela ainda é tratada com condescendência e preconceito. Ficou óbvio para mim que muitas das críticas foram inspiradas primeiro por um preconceito religioso, doença típica de nossa classe intelectual e que faz com que tratem qualquer pessoa que se atreva a confessar algum tipo de fé com escárnio e desprezo. Com a exceção é claro de fé em duendes, entidades do Candomblé, ou em curandeiros do tipo João de Deus.
A outra razão, talvez mais forte das críticas à ministra brotam de uma misoginia enraizada em nossa maneira de ver o mundo. Mulheres que ocupam lugar no centro da sociedade têm que ter uma certa aparência senão começam a causar desconforto. Nos orgulhamos de ser um país de mulheres bonitas. Mas na verdade somos o país onde ser atraente é uma condição para o status social. Toda mulher brasileira enfrenta a cobrança social de cultivar uma figura sexualmente desejável, e pior, desejável de acordo com os padrões eróticos definidos pela cultura pornográfica.
Uma mulher como a Juliette Binoche, mesmo pra lá de cinquentona com olhos fundos e rugas no rosto é considerada uma mulher atraente para a mídia mundial. A mídia americana honra a beleza de Jane Fonda, aos 82 anos propriamente enrugada e digna, e considera bonita a simpatia esfuziante de Lily Tomin aos 80 anos, porque beleza aqui é mais do que juventude, e traços perfeitos. No Brasil elas teriam que se vestir de couro e lycra preta, e mostrar o corpo em maiôs minúsculos se quisessem provar serem ainda mulheres belas.
Sou considerada uma mulher atraente por quem me interessa, meu marido. Me basta. Mesmo depois de 32 anos de casamento, ainda nos romanceamos. Mas, a sexualidade me serve só para o quarto. Em outros espaços sociais uso meu coração, minha capacidade de empatia, e ocasionalmente meu cérebro. Digo ocasionalmente ironizando me entendam bem, porque a maioria de minhas interações sociais requerem apenas uma porção ínfima de minha capacidade cerebral. Não tenho derriére redondo, pele morena e peito pequeno, não caminho com corcoveio reptiliano, ensaiado para atrair olhares masculinos. No Brasil me chamariam de canhão, bacuru, e outros termos cruéis.
No Brasil se você não “faz a sua parte” como mulher, servindo a sanha masculina com uma feminilidade erótica você não é considerada bonita. No Brasil eu seria obrigada a me “cuidar”, chafurdando-me no silicone, expondo-me constantemente a facas cirúrgicas para me legitimar como pessoa. Saúde, ou peso normal não seriam o alvo, eu teria que me privar rotineiramente da alegria de uma boa refeição, praticando dietas de fome e seguindo rotina de exercícios planejada para militares em guerra. Tudo para, apesar da idade, manter um lugar ao sol no universo e defender meu casamento. Eu lutaria contra o medo da traição continuamente, porque meu marido, já possuidor do “direito” à traição como todo homem brasileiro, poderia justifica-lo ainda mais se eu não mantivesse a cara esticada à la Elza Soares e o peitos da Pamela Anderson.” É um fardo pesado para se carregar.
Mas esta análise pode ir além da adjetivação e verificar que a própria condição feminina está substantivamente condicionada a certos atributos. O poder de sedução sexual e o valor pessoal andam juntos para as mulheres, em nosso mundo de praias sem fim. A mulher não-bonita é automaticamente menos mulher, ela é um ser neutro, um quase-homem.
Para ser mulher de verdade, de acordo com a cultura brasileira, temos que nos deixar enquadrar em um dos dois arquétipos que nos são oferecidos, a prostituta ou a mãe. A prostituta é o substrato da mulher atraente. Beleza é fundamental, diz Vinícius, definindo a essência da feminilidade pela propriedade que considera principal: atração sexual. Por isto Paulo Vittar, e muito antes dele a Roberta Close, podem ganhar um concurso de mulher mais bela. Ser mulher não é uma condição biológica. O ser atraente te torna mulher. Seguir os padrões desta definição erótica de boniteza te autoriza como mulher. O outro arquétipo é o da mãe. Algumas das mulheres petistas foram enquadradas assim pela mídia para serem salvas da crítica inevitável a seus corpos.
A Dilma, vassala subserviente de um projeto político, é vista como uma mãe de uma geração de militantes. Poucos se atrevem a falar de sua forma física porque não é apropriado se criticar a forma física da mãe. O que estes dois paradigmas têm em comum? A mulher se define não por seu valor humano intrínseco, mas por seu valor funcional em relação ao homem. Sou mulher porque os sirvo sexualmente, ou porque os gerei.
Infelizmente, mulheres como eu, e como a ministra Damares Alves por exemplo, seja de maneira consciente, ou por mero instinto de sobrevivência, nos recusamos a nos deixarmos definir por estes arquétipos. Não fazemos da sensualidade uma ferramenta social nem somos vassalas subservientes de homem nenhum. Acreditamos que temos valor por existirmos, valor intrínseco e não apenas valor funcional. Como a cultura reage a mulheres que se arrogam o privilégio de existir com uma completa consciência de valor pessoal, não informada pela sua funcionalidade em referência aos homens?
Mulheres assim, até agora, em nossa cruel cultura social, nas palavras de Vinícius, se transformam em rosas de Hiroshima, sem cor sem perfume sem rosa, sem nada. Estas rosas são solenemente ignoradas, ou pisoteadas até perder o frescor. Resta saber se as transformações culturais que agora querem limpar o país vão varrer pra fora dele também nossa misoginia.
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Braulia Ribeiro trabalhou como linguista, etnografa e missionária na Amazônia durante trinta anos e no Pacífico Sul por seis anos. Ela tem um MA em Linguistica pela Unir, um MDiv da Yale University e é doutoranda em História e Teologia Política na Universidade de St Andrews na Escócia. É autora dos livros Chamado Radical e Tem Alguém Aí Em Cima?, publicados pela Editora Ultimato. www.braulia.com.br.
Essa publicação foi modificada 31 de maio de 2019
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