Se os jovens brasileiros formassem um país próprio, as taxas de homicídio desse país se assemelhariam às das nações com os maiores índices de violência do mundo. É o que aponta o Atlas da Violência 2019, mapeamento das mortes violentas no país feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com base em dados de 2017, coletados pelo Ministério da Saúde.
O Brasil registrou 65.602 homicídios no ano retrasado, um aumento de 4,2% em relação ao ano anterior e, o mais preocupante, um número recorde que equivale a 31,6 mortes para cada 100 mil habitantes - mais do dobro, por exemplo, da taxa de homicídios do Iraque em 2015 (ano mais recente com estatísticas da OMS, a Organização Mundial da Saúde).
A OMS considera epidêmicas taxas de homicídio superiores a 10 homicídios a cada 100 mil habitantes.
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E, levando-se em conta apenas os dados da violência contra jovens, o cenário é ainda pior: entre os 65,6 mil de homicídios no Brasil em 2017, mais da metade - ou 35.783 - vitimaram pessoas entre 15 a 29 anos, o que leva o Ipea e o FBSP a falarem em uma "juventude perdida por mortes precoces".
Considerando-se apenas essa faixa etária, a taxa brasileira de homicídios por 100 mil habitantes sobe para 69,9. É equivalente à taxa de homicídios (70) que o Haiti, país mais pobre das Américas, registrou nessa faixa etária em 2015, segundo o dado mais recente da OMS.
E, se compararmos o dado às taxas gerais dos países, o "Brasil dos jovens" fica atrás apenas de nações de extrema pobreza e crise, como Honduras (85,7 mortes por 100 mil habitantes em 2015) e Venezuela (81,4 por 100 mil habitantes em 2018, segundo o Observatório Venezuelano da Violência).
"O Brasil é um país de nível social médio mas, na segurança pública, convive com padrões semelhantes aos dos países mais violentos do mundo e de instituições frágeis", diz à BBC News Brasil Renato Sergio de Lima, presidente e pesquisador do FBSP.
"A morte prematura de jovens (15 a 29 anos) por homicídio é um fenômeno que tem crescido no Brasil desde a década de 1980", aponta o estudo recém-divulgado, lembrando que essa é uma idade em que as pessoas têm alto potencial produtivo, que acaba sendo desperdiçado. "Além da tragédia humana, os homicídios de jovens geram consequências sobre o desenvolvimento econômico e redundam em substanciais custos para o país."
Levantamento da Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo federal de junho de 2018 aponta que o Brasil perde cerca de R$ 550 mil para cada jovem de 13 a 25 anos vítima de homicídio, levando-se em conta o quanto o país deixa de ganhar com a capacidade produtiva (o trabalho) da vítima e os custos de saúde, judiciais e de encarceramento ligados a cada morte.
"A perda cumulativa de capacidade produtiva decorrente de homicídios, entre 1996 e 2015, superou os R$ 450 bilhões de reais", diz o texto.
De volta ao relatório do Ipea, traçando um perfil dos casos de homicídios em 2017, identificou-se o seguinte:
- 91,8% das vítimas são homens. Desses, 77% são mortos por armas de fogo;
- 75,5% são negras;
- O pico de mortes é aos 21 anos de idade;
- A maior parte das vítimas tem baixa escolaridade (ensino fundamental incompleto);
- A maioria das mortes tem se concentrado em 12 Estados do Norte e do Nordeste, muitos dos quais têm visto a violência crescer exponencialmente, na contramão de 15 dos Estados do Centro-Oeste, Sul e Sudeste, onde os índices de mortes têm diminuído.
As causas da violência
Entre os Estados, os maiores índices de homicídios de jovens em 2017 estão no Nordeste: Rio Grande do Norte - que virou o Estado mais violento do Brasil, em proporção a sua população -, Ceará, Pernambuco e Alagoas, seguidos pelo Acre, no Norte do país.
Os potiguares convivem, hoje, com uma taxa de 152,3 homicídios de jovens a cada 100 mil habitantes. Entre os cearenses, é de 140. Para efeitos comparativos, o menor índice de violência do país hoje é registrado no Estado de São Paulo, onde a taxa é de 10,3 homicídios a cada 100 mil habitantes e de 18,5 entre jovens de 15 a 29 anos.
Ainda assim, os pesquisadores fazem ressalvas aos dados paulistas, alegando que o Estado é um dos que registrou uma alta nas chamadas "mortes violentas de causa indefinida" (mortes não naturais sobre as quais não há detalhes sobre as causas), o que pode significar que o número total de homicídios esteja, em algum grau, sendo subestimado.
O que leva, então, a tantas mortes entre jovens?
O Ipea e o FBSP apontam que por trás de grande parte dos homicídios estão, sobretudo no Norte e no Nordeste, as guerras de facções criminosas - cujos membros são em geral homens jovens - como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), e outros grupos criminosos regionais, na disputa por novos mercados e pelas rotas que levam drogas à África e à Europa.
"O ano de 2017 foi o ápice na briga por rotas nacionais e internacionais de drogas e armas, e o Nordeste tem papel estratégico na logística do crime organizado", aponta Lima, do FBSP.
Essas disputas ficam evidentes nas prisões, como ocorreu em maio em Manaus, onde ao menos 55 detentos foram mortos em unidades do sistema prisional por conta de disputas internas da Família do Norte, a terceira maior facção criminosa do país.
A isso se somam contornos regionais. No Ceará, Estado em que mais cresceu a taxa de homicídios - houve um aumento de 48,2% entre 2016 e 2017 -, o estudo aponta uma forte presença das facções criminosas na vida dos bairros populares de Fortaleza e um contexto em que a violência passa a ser cotidiana na resolução de conflitos interpessoais.
O Acre, o segundo Estado (atrás do RN) com a maior taxa de homicídios, está na rota de drogas que vêm do Peru e da Bolívia.
Transição demográfica e porte de armas
Os pesquisadores do Ipea e do FBSP notam que um estudo recente do Núcleo de Estudos da Violência da USP em parceria com o portal G1 aponta que o número de homicídios no Brasil diminuiu em 2018 em relação a 2017. Sem entrar em detalhes nas causas disso (que segundo o estudo, precisam ser mais investigadas, inclusive para avaliar se não houve piora na coleta de dados), os pesquisadores apontam dois fatores importantes que podem, no contexto atual brasileiro, levar à redução das mortes violentas:
1) A transição demográfica pela qual passa o Brasil: com o país em processo de envelhecimento, o número de jovens tende a cair, o que deve a levar à redução no número de pessoas dentro dessa faixa etária hoje tão vulnerável à violência. O fato de essa transição ainda não estar em curso em Estados do Nordeste ajuda, inclusive, a explicar as altas taxas de violência do Estado.
2) A acomodação: como é muito difícil sustentar guerras de facções por muito tempo, a tendência é que os grupos criminosos arrefeçam os combates entre si. "Todavia, esse virtual processo de acomodação na guerra entre as maiores facções se insere em um equilíbrio instável, podendo a qualquer momento ser revertido, como nos mostra o mais recente morticínio nas cadeias em Manaus", diz o estudo.
Ao mesmo tempo, a avaliação dos pesquisadores do Ipea (que é um órgão do governo federal, vinculado hoje ao Ministério da Economia) e do FBSP é de que, enquanto o Estatuto do Desarmamento ajudou a conter a violência no país, a flexibilização do porte de armas promovida atualmente pelo governo de Jair Bolsonaro é preocupante, pelo potencial em intensificar as taxas de homicídio.
"Uma arma de fogo dentro do lar faz aumentar as mortes violentas dos moradores, seja por questões que envolvem crimes passionais e feminicídios, seja porque aumenta barbaramente as chances de suicídio, ou ainda porque aumentam as chances de acidentes fatais, inclusive envolvendo crianças", diz o relatório, agregando que "uma parte significativa dos crimes violentos letais intencionais é perpetrada por razões interpessoais".
Bolsonaro tem defendido, por sua vez, que a flexibilização dá mais direito de defesa aos cidadãos e que "a segurança pública começa dentro de casa".
Políticas públicas pela redução de homicídios
O relatório aponta, ainda, a necessidade de o Brasil desenvolver "políticas públicas focadas na redução de homicídios entre jovens, principal grupo vitimado pelas mortes violentas intencionais".
"É fundamental que se façam investimentos na juventude, por meio de políticas focalizadas nos territórios mais vulneráveis socioeconomicamente, de modo a garantir condições de desenvolvimento infanto-juvenil, acesso à educação, cultura e esportes, além de mecanismos para facilitar o ingresso do jovem no mercado de trabalho", diz o estudo.
"Inúmeros trabalhos científicos internacionais mostram que é muito mais barato investir na primeira infância e juventude para evitar que a criança de hoje se torne o criminoso de amanhã, do que aportar recursos nas infrutíferas e dispendiosas ações de repressão bélica ao crime na ponta e encarceramento."
O relatório também sugere que o Brasil mude seu foco de atuação em segurança pública, do atual modelo mais voltado à coerção policial "para um baseado na investigação e na inteligência policial, em detrimento da crença única no policiamento ostensivo e repressão ao varejo das drogas".
Para embasar esse dado, o estudo lembra a baixíssima taxa de esclarecimento dos homicídios ocorridos no país: enquanto alguns Estados têm taxas de no máximo 20% de elucidação dos crimes, outros sequer computam esse dado.
"Nosso sistema de investigação é sucateado e obsoleto", diz o texto. "E seguimos na crença nunca confirmada de que o endurecimento penal trará resultados."
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