sexta-feira, 3 de julho de 2020

Medo, prudência e coragem em tempos de pandemia


 
Nestes dias de isolamento, estava procurando um livro para ler, e vi na estante um exemplar fino e encadernado com espiral. Não me lembrava dele e peguei para ver do que se tratava. Era uma biografia da médica e missionária Dra. Rettie Wilding (1899-1986). Ganhei esse livro do seu filho, Dr. Joe Wilding, médico em Anápolis, minha cidade natal. Ele foi médico de toda a minha família, desde meus avós, além de ter sido, também, meu professor na escola dominical. 
 
Tive o privilégio de conhecer pessoalmente a Dra. Rettie. Fomos membros da mesma igreja enquanto morei em Anápolis. Antes de ler o livro já conhecia um pouco da sua história, mas no ano passado me encontrei com o Dr. Joe e conversamos um pouco sobre seus pais e o trabalho missionário deles aqui no Brasil. Ele ficou de me enviar uma cópia do livro de sua mãe: Sowing in Tears (Semeando em Lágrimas). Pouco tempo depois o livro me chegou às mãos. Dei uma rápida olhada e o guardei para ler com calma. Providencialmente li neste período de pandemia e isolamento social. 
 
Era uma noite comum, como têm sido estas semanas de isolamento, quando iniciei a leitura do livro da Dra. Rettie e me deparei com a sua experiência como médica missionária na Ilha do Bananal entre os índios Carajás. Não consegui parar de ler. Sua história foi como uma luz que brilhou em meio às incertezas e angústias que vivemos.
 
Dra. Rettie nasceu na Escócia. Formou-se aos 24 anos em medicina e, aos 27 anos, já possuía sua própria clínica, casa e carro. Se conquistar isso hoje já é um prodígio, imagine na década de 20 do século passado. Aos 8 anos ela comentou com sua mãe que gostaria de ser missionária quando crescesse. Sua mãe ouviu atenciosamente o desejo da filha, guardou aquilo em oração, mas nunca a procurou influenciar. 
 
Em 1929, com sua carreira profissional bem encaminhada, ela ouviu um sermão sobre o chamado de Abraão. Ela descreve que enquanto ouvia o pregador lendo o texto bíblico, tremia dos pés à cabeça. Saiu da igreja com a certeza de que Deus havia falado com ela, como falou a Abraão para sair de sua terra e do meio de sua parentela. Mesmo sem saber para onde iria, como também foi com Abraão. Naquela noite, em seu quarto, foi tomada por uma intensa alegria e disse a Deus que estava “ansiosa por obedecer, pronta para seguir, a qualquer custo”. 
 
Ela havia participado de algumas reuniões da União Evangélica Sul Americana e ouviu falar da necessidade de médicos na Ilha do Bananal, no Brasil. Ela orou e disse a Deus que estava pronta para ir para onde ele a enviasse, inclusive para as regiões mais difíceis, como a Ilha do Bananal. Ela descreve que naqueles dias viveu “com seus olhos voltados para a glória além e nada parecia impossível”.
 
 
Depois de se desfazer de sua clínica e seus pertences, em 1930, ela chega no porto de Santos. De lá seguiu para São Paulo, depois para Catalão, Goiás Velho (capital de Goiás à época), Leopoldina (hoje Aruanã) e, de lá, duas semanas de barco até a Ilha do Bananal. Já trabalhavam na Ilha como missionários um casal e Josiah Wilding (com quem ela se casaria poucos anos depois). Dra. Rettie, àquela altura, era uma jovem de 31 anos, que abrira mão de uma carreira promissora de médica na Escócia, e agora se encontra feliz e grata numa ilha distante, cuidando da saúde e da evangelização de indígenas e moradores das vilas próximas. Passava o dia tratando de doenças, como: malária – muito comum naquela região, catarata, catapora, picadas de cobra e todo tipo de enfermidade comum para uma região remota, sem médicos ou hospitais. 
 
Junto com seus colegas, construiu um pequeno hospital, uma escola para as crianças e uma igreja e, quando começaram a aparecer os portadores de hanseníase (lepra como era conhecida na época), edificou um leprosário. Durante o dia o trabalho médico era intenso. As noites e os domingos eram dedicados à evangelização e à instrução dos convertidos. 
 
As dificuldades que a Dra. Rettie enfrentou foram imensas e inimagináveis para qualquer um de nós. Qualquer deslocamento era longo e desconfortável. Os perigos enfrentados numa região remota eram constantes, a falta de material para o trabalho médico era enorme, os recursos escassos e o número de pessoas para cuidar da evangelização, educação, e outras atividades era pequeno. Buscar material para o atendimento médico era tarefa que levava semanas de viagem a barco em meio a todos os perigos que se corria. 
 
No entanto, o que nos chama a atenção no seu relato é que, ao lado do trabalho exaustivo e cheio de perigos que a ocupava dia e noite, havia a sua alegria de servir àquele povo, falar da salvação em Cristo e ver homens, mulheres e crianças sendo convertidos e batizados. Sua paixão pelo evangelho de Cristo, pelos indígenas de vários grupos da região e toda a população que vivia nas vilas, como também sua alegria em os servir é simplesmente impressionante.
 
Em novembro de 1932 ela e o missionário Josiah Wilding se casam em Anápolis. Logo após a cerimônia de casamento, no mesmo dia, retornam para a Ilha do Bananal, felizes e cheios de esperança. No final de janeiro do ano seguinte, seu marido é diagnosticado com malária e no dia 3 de fevereiro ele falece. Ficaram casados apenas por um pouco mais de dois meses. Ela se sentiu completamente desolada. Passados alguns meses, ela volta para a Escócia onde dá à luz ao seu único filho que recebe o nome de seu pai. Quando o pequeno Joe está com apenas 8 meses, eles voltam para a Ilha do Bananal para dar continuidade ao trabalho.
 
Não é difícil imaginar o sofrimento e as dificuldades que a Dra. Rettie enfrentou. Solidão, angústia e temores fizeram parte de sua vida, porém, nada disso diminuiu o amor, dedicação e coragem com que realizava o seu trabalho. A história dela inspira e contrasta com a de muitos cristãos nos dias de hoje, porque a segurança dela e disposição frente aos desafios e perigos que enfrentou, depara-se com o sentimento de medo e paralização que afeta muitos de nós nestes tempos de pandemia. 
 
O vício que encobre a virtude

A fronteira que separa o medo da prudência, e da prudência com a coragem é muito tênue. Gregório Magno (540-604), em sua clássica obra O Cuidado Pastoral, alerta os novos pastores dizendo-lhes que frequentemente os vícios assumem a aparência de virtudes. A avareza se apresenta com o nome de parcimônia; a indulgência com o nome de bondade; ira com o nome de zelo e a precipitação com a prontidão. As virtudes, muitas vezes, escondem vícios. Para ele, os pastores não deveriam ficar impressionados com as virtudes que as pessoas demonstravam, mas com os vícios que estas virtudes escondiam.
 
A prudência é uma virtude que pode, muitas vezes, esconder um vício: o medo. Imagino que quando a Dra. Rettie compartilhou com familiares e amigos a decisão de dedicar sua vida como médica missionária na Ilha do Bananal, ouviu conselhos para não fazer isto. Afinal, era uma mulher jovem, solteira, médica, com casa, carro e clínica, e poderia servir a Deus sem precisar deixar seu país, família, para se aventurar num mundo desconhecido e perigoso. Não seria prudente. É possível que alguns destes conselhos tenham partido de pessoas prudentes, porém, é também possível que os mesmos conselhos tivessem sua origem no medo. A virtude pode mascarar o vício. 
 
Foi seu advogado quem a encorajou. Quando o procurou para conversar sobre o que fazer com seus bens, ela compartilhou com ele seu chamado e, depois de ouvi-la calmamente, ele lhe disse: “se você crê que foi Deus quem a chamou, então obedeça”. Era um advogado cristão. Ao invés de se deixar influenciar pelo medo, ele a ouviu atentamente e, sabiamente, estabeleceu o princípio para orientá-la: “se foi Deus quem a chamou…”. A presença de Deus dissipa os obstáculos levantados pelo medo.
 
Admiramos e aplaudimos a coragem dos profissionais que atuam na linha de frente durante a pandemia. Muitos fazem isto por altruísmo e compromisso com sua vocação e o serviço sacrificial. Sabemos que outros o fazem apenas por dever ou para preservação do emprego. De qualquer forma, somos gratos a eles. Muitos que ficam isolados em casa, se sentem desconfortáveis sabendo que existem aqueles que estão correndo riscos para garantir sua segurança. Outros, contudo, permanecem isolados apenas pelo medo de contraírem o vírus. Ainda que Deus os chamasse para deixarem a segurança de sua fortaleza doméstica para cuidar dos enfermos e necessitados, é provável que, em nome da prudência, não obedecessem. 
 
A Dra. Rettie é um exemplo de coragem e dedicação que admiramos, mas não o desejamos nem para nós, e muito menos para os nossos filhos. A fronteira que separa o medo da prudência e a prudência da coragem, como disse, é tênue. Fico imaginando a Dra. Rettie retornando para a Ilha do Bananal com um bebê de 8 meses, com o risco da malária que já havia levado seu querido esposo, onde também uma epidemia de catapora provocou a morte de crianças, além dos outros perigos de uma região inóspita na década de 30 do século passado. Seria ela uma mulher imprudente? Não. Estaria colocando a sua vida e a do seu filho em risco? Sim.
 
Lutero e a peste do seu tempo

Em 1527, uma peste atingiu a cidade de Wittenberg onde o reformador Martinho Lutero vivia e ensinava. O príncipe-eleitor da Saxônia mandou encerrar as atividades da Universidade onde Lutero ensinava e ordenou que ele deixasse a cidade, mas ele se recusou a sair. Lutero transformou sua casa, um antigo mosteiro agostiniano, num hospital onde acolheu outros pastores da cidade, bem como os enfermos para onde eram trazidos e tratados, e muitos se recuperaram. Sua esposa Catarina estava no último mês de gravidez e seu primogênito se encontrava enfermo. Imprudência ou coragem? 
 
O pastor Johannes Hess escreveu a Lutero pedindo que lhe orientasse sobre se um cristão deveria ou não fugir da peste. Ele lhe respondeu numa carta intitulada: Se alguém pode fugir de uma praga mortal. Nesta carta, Lutero procura demonstrar as responsabilidades de um cidadão comum e apresenta alguns conselhos para os cristãos em tempos de pandemia. Para ele, todo o cidadão que tem responsabilidades para com o próximo não deveria fugir de sua vocação. Para os pastores, ele diz que devem permanecer firmes diante do perigo da morte para consolar e fortalecer os que se encontram doentes. 
 
Sua carta apresenta dois princípios básicos que nem sempre conseguimos conciliá-los: a santidade da vida, incluindo aqui a própria vida, e a santidade do próximo, particularmente quando este se encontra enfermo e necessitado. Para Lutero, precisamos cuidar do nosso próprio corpo, evitando ao máximo ser infectados pela doença. Neste sentido ele defendia medidas como quarentena e o tratamento médico indicado. Por outro lado, se algum cristão achasse que deveria deixar a cidade para se proteger da doença, ele reconhecia que era uma decisão pessoal e que não deveria suscitar culpa, mas deveria ser tomada diante de Deus, em oração, sempre considerando a necessidade do próximo. Ele afirma nesta carta:
 
“Pedirei a Deus para, misericordiosamente, proteger-nos. Então farei vapor, ajudarei a purificar o ar, a administrar remédios e a tomá-los. Evitarei lugares e pessoas onde minha presença não é necessária para não ficar contaminado e, assim, porventura infligir e poluir outros e, portanto, causar a morte como resultado da minha negligência. Se Deus quiser me levar, ele certamente me levará e eu terei feito o que ele esperava de mim e, portanto, não sou responsável pela minha própria morte ou pela morte de outros. Se meu próximo precisar de mim, não evitarei o lugar ou a pessoa, mas irei livremente conforme declarado acima. Veja que essa é uma fé que teme a Deus, porque não é ousada nem insensata e não tenta a Deus.”1
 
Um princípio que sempre orientou os cristãos em tempos de pestes, epidemias, guerras e outras tragédias foi o triunfo de Cristo sobre o pecado e a morte. A ressurreição de Cristo deu aos cristãos a segurança de que a morte foi vencida e o medo dela, que é o último e mais poderoso inimigo do ser humano, foi derrotado. A certeza da ressurreição sempre foi a verdade que sustentou o povo de Deus em momentos de crise. Esta era a certeza da Dra. Rettie. Também foi a certeza de Lutero e tantos outros que não permitiram que o medo governasse suas vidas e ações.
 
Medo, prudência e coragem

Não é fácil discernir a fronteira entre estes três. O apóstolo Paulo diz a seu filho na fé, Timóteo, um jovem pastor, que “Deus não nos tem dado espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação” (2 Timóteo 1:7). Tanto no testemunho da Dra. Rettie como no de Lutero, o que vemos é exatamente isto: poder, amor e moderação. Um amor que motiva, um poder que encoraja e a moderação que não permite agir como insensatos.
 
Dra. Rettie, assim como Lutero. experimentaram a desolação, solidão e angústia. Lutero chegou a sofrer uma profunda depressão e enfermidades que o debilitaram. Não foram heróis. A cultura moderna, dominada pelo medo e insegurança, precisa criar seus heróis, sejam eles reais ou imaginários. Os profissionais que se dedicam ao serviço sacrificial para cuidar de enfermos nesta pandemia, também não são heróis. São pessoas comuns, como qualquer um de nós, sofrem com a insegurança, falta de recursos, incertezas e depressão, apenas não permitiram que o medo os intimidasse e consideraram os outros mais importantes do que eles.
 
Quando vejo profissionais de saúde sendo aplaudidos como heróis, sinto alegria e tristeza. Alegria porque merecem ser reconhecidos por seu trabalho e dedicação. Tristeza porque muitos daqueles que os aplaudem, o fazem apenas porque eles garantem sua segurança, e não porque reconhecem a coragem e o serviço abnegado e sacrificial como virtudes a serem imitadas. Muitos não trocariam o conforto e a segurança do seu isolamento para participarem, ainda que como simples voluntários, no cuidado dos outros. É triste quando um povo precisa de heróis.
 
Deus não nos tem dado espírito de covardia, mas de poder, amor e moderação. Combinar estas três virtudes é o caminho para uma vida de entrega, dedicação e serviço sacrificial, que é o chamado de Cristo. O mundo não precisa de heróis, precisa de homens e mulheres prudentes e corajosos, dispostos a viver o autêntico altruísmo, cujas vidas inspiram e nos tornam mais verdadeiramente humanos e a fé cheia de compaixão.   


Por Ricardo Barbosa de Sousa

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